Sunday, February 20, 2005

Um artigo para discussão

Conheço Luiz Simi apenas por e-mails. Mas o blog dele, o Livre Pensamento, tem se mostrado um importante referencial para a discussão da filosofia que chamamos geralmente de "liberalismo clássico".

É tão difícil encontrar isto pela internet, principalmente quando se nota um esforço do autor para realmente aprender e ensinar, quase que ao mesmo tempo, enquanto escreve...

O artigo abaixo me despertou uma dúvida: estará Luiz indo longe demais em sua crítica e corre o risco de passar a condenações agressivas de não-liberais? Ou está apontando algo importante na realidade brasileira?

Gostaria de ver comentários ao artigo dele. A Escolha Pública tem um grande desafio: encarar o papel da ideologia na história econômica. É sobre isto que eu acho que Simi fala.

Então, boa leitura e, claro, comentários são bem-vindos.

Os Cristãos-Novos da Ortodoxia Econômica

Nos últimos dois anos (ou mais, se pensarmos no governo anterior), testemunhamos um fenômeno que seria digno de um estudo científico aprofundado, tamanha o seu (aparente) impacto e abrangência: a súbita e ampla conversão de uma parcela significativa das esquerdas (inclusive da militância) à ortodoxia na área econômica.

Da noite para o dia, observamos gente que sempre defendeu as maiores barbaridades em termos econômicos (como calote da dívida externa, rompimento de acordos internacionais, estatização ou re-estatização de empresas em áreas “estratégicas”, desapropriações maciças no campo, controles de preços, e outros intervencionismos de toda sorte) defendendo com um vigor inédito políticas de responsabilidade fiscal; um receituário monetarista extremamente ortodoxo (talvez até demais); e uma política econômica sem “invenções”, pautada no respeito aos contratos. O que houve? Terá sido a esquerda brasileira atingida por um facho de luz (quiçá divina) que a fez perceber seus erros e decidir por trilhar o caminho do bom-senso e da lógica?

Embora esse pensamento seja alentador, é infelizmente falso. O que temos é na verdade algo que podemos chamar, na melhor das hipóteses, de uma hoste de cristãos-novos.

Tal qual os judeus convertidos ao cristianismo à força, a esquerda entoa o mantra da ortodoxia e faz questão de mostrar seu comprometimento com a nova fé; mas na privacidade de sua morada e de seus pensamentos, continua a crer na religião que publicamente abandonou. E onde quer que as pessoas não estejam olhando, sempre que a oportunidade aflora, retoma os velhos hábitos e entoa (fervorosamente) os cânticos da fé cuja prática aberta lhe é negada pelas circunstâncias.

Claro que aqui não pretendo, de forma alguma, comparar as práticas do judaísmo com as da esquerda, ou efetuar um julgamento moral das razões históricas que levaram às conversões da época; apenas comparo as circunstâncias e características de um evento com as de outro. Comparar o judaísmo às crenças da esquerda, obviamente, é uma injustiça com a mais antiga religião monoteísta do mundo, rica em preceitos éticos e mãe do cristianismo. Restrinjo-me apenas, pois, à analogia histórica.

Tal qual com os cristãos-novos, não restava à esquerda muita escolha. O intervencionismo keynesiano, favorito absoluto da academia e da política brasileiras, mostrou-se insustentável; depois de décadas de uso contínuo, apresentou uma conta altíssima em termos de inflação, dívida pública, baixa competitividade e, mais sério, oportunidades perdidas. As políticas econômicas de inspiração esquerdista (como os Planos Cruzados da vida) criadas para equacionar o passivo do intervencionismo pregresso (usando, claro, de ainda mais intervencionismo), baseadas em premissas absolutamente falhas sobre como a economia (e a cabeça das pessoas) funciona, mostraram-se absolutamente ineficientes, quase suicidas. Somente quando a esquerda moderada adotou políticas minimamente responsáveis, embasadas nos pensamentos monetarista e clássico, o desastre completo foi evitado. Restou à esquerda radical, incubida de governar o país pelo voto popular, apenas uma opcão: curvar-se diante da realidade e prosseguir com as políticas herdadas, ou correr o risco de lançar o país no caos com as políticas irracionais que sempre defendeu. Em um movimento de auto-preservação (e não conversão verdadeira como muitos pensam), os novos ocupantes do poder e seus militantes mais devotos esconjuraram seus votos pregressos e aceitaram os sacramentos da fé que sempre condenaram.

(E não me venham esquerdistas imberbes me dizer que os planos econômicos da Nova República e do governo Collor não eram de esquerda; ainda tenho na memória a imagem nítida da sra. Maria da Conceição Tavares, em entrevista à televisão, defendendo o Plano Cruzado como a redenção da economia nacional. Visto que todos os planos que o sucederam até o Real eram praticamente idênticos em formato, ferramentas e objetivos, o apoio ao original certamente significa aceitação de todas as suas cópias).

Mas que evidências temos que de essa conversão não é real, mas apenas um movimento tático de auto-preservação? Basta observar as ações da esquerda no poder fora das esferas relacionadas à política econômica propriamente dita.

Enquanto Banco Central e Ministério da Fazenda discorrem sobre a necessidade de previsibilidade, rigidez nas metas fiscais, controle da inflação e respeito aos contratos (e com isso provêm o discurso repetido ad nausean por militantes, simpatizantes e apoiadores em geral), os braços políticos do governo apresentam ao país um arroubo autoritário atrás do outro: tentativas de encabrestar a imprensa, a produção artística e cultural, a universidade. Enquanto as autoridades econômicas defendem a necessidade de respeitar contratos e a propriedade, ministros de Estado comparecem a atos oficiais de entidades que têm como sua prática corriqueira a exata violação desses preceitos e o desrespeito aos elementos mais fundamentais do Estado de Direito. Ao mesmo tempo que fala da necessidade de responsabilidade fiscal, o governo tenta impor à sociedade um confisco tributário ainda mais violento e injusto do que o feito por seu antecessor, estrangulando os setores produtivos que não dependem do governo para sobreviver e que não estão ligados à estrutura sindical que o PT comanda. E com a mesma fleuma que defende o respeito aos acordos internacionais, à democracia e à transparência administrativa, o governo atual confraterniza-se com regimes africanos e latino-americanos construídos exatamente sobre a violação desses princípios.

Esse mesmo comportamento ambíguo pode ser visto entre os militantes: ao mesmo tempo que defendem ferrenhamente a política econômica do governo (a mesma que, na gestão anterior, era denunciada como “neoliberal” e “entreguista”), citam Cuba como um exemplo para a América Latina, defendem Hugo Chavez e o seu regime liberticida, e pregam o anti-americanismo mais basal e rasteiro.

Temos então um caso coletivo de dupla personalidade? Estarão tanto partidos como militantes da esquerda mergulhados em uma luta espiritual, com dois espíritos diferentes disputando o mesmo corpo? Certamente não. A explicação é muito simples: a conversão da esquerda à ortodoxia econômica não é sincera. As palavras são repetidas, os mantras são entoados, mas não existe compromisso intelectual e moral com os princípios que essa ortodoxia defende. A esquerda continua não acreditando em respeito a contratos, propriedade privada, desregulamentação, livre iniciativa, democracia e direitos humanos; apenas repete os chavões da ortodoxia porque é conveniente no momento fazê-lo. Os corações e mentes da esquerda não estão onde está seu discurso mercadista; estão onde a sua prática desvinculada da economia está. E nesse outro lado da esquerda que devemos buscar visualizar o modelo em que ela realmente acredita. E esse modelo é o que sempre foi: tirania, pura e simples.

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